Sobre o ciúmes

As emoções humanas costumam ser um turbilhão desenfreado. A razão, faculdade do pensamento que se propõe a ser a governante dentro da mente humana não consegue explicar tudo, muito menos os nossos afetos. Seria perda de tempo então filosofarmos sobre o que se passa dentro de nós? Esse movimento analítico já não seria um erro? A resposta certamente não é tão simples, contudo, não podemos desistir de compreender ou pelo menos tentar explicar os fenômenos dos sentimentos que surgem sem serem convidados e, que por vezes confundem nossas ações.

As condições psicológicas do ser humano são singulares sem dúvida, mas podemos delimitar certas fronteiras dentro de quadros que se repetem em praticamente todas as pessoas e que nos permite questionar se fazem parte de nossa natureza. No movimento das relações humanas, sejam elas quais forem, encontramos sempre a presença do ego que exige para si a posse das coisas. Neste cenário e por outros fatores surge o ciúme.

Há quem diga ser natural e até mesmo saudável nas relações. Sabemos que está presente em nossas vidas desde a infância, pois temos ciúmes da relação entre nossos pais e também ciúmes de nossos irmãos. Mas o que é o ciúme? De forma sucinta, pode-se dizer ser o sentimento de raiva ou tristeza ou ambos simultâneos, sobre a possibilidade de se perder a pessoa amada para outra.

Há quem diga que o ciúme é importante nos relacionamentos, mais precisamente nos passionais, em doses reduzidas, pois assim pode-se mostrar ao parceiro que você realmente se importa com ele e que há certa proteção.

Do ponto de vista da psicanálise é dividido em três níveis, normal, neurótico e delirante. Os segundo e terceiro casos tratam-se de patologias, justamente devido ao grau de intensidade apresentado. Em um ciúme normal, o parceiro queixa-se com o outro sobre possíveis quebras no contrato afetivo e se predispõe a conversar e encontrar soluções juntos. Já no neurótico e delirante há uma crença em uma suposta certeza da traição do companheiro.

“Comportamentos tais como examinar bolsos, carteiras, recibos, contas, roupas íntimas e lençóis, ouvir telefonemas, abrir correspondências, seguir o cônjuge ou mesmo contratar detetives particulares para fazer isso costumam não aliviar e ainda agravar sentimentos de remorso e inferioridade das pessoas que padecem de ciúme excessivo. Um exemplo disso é caso que Wright (1994) descreveu de uma paciente que chegava a marcar o pênis do marido com caneta para conferir a presença desse sinal no final do dia (ALMEIDA, 2013, p.2”).

As causas podem ser diversas, do ponto de vista da psicanálise essa predominância de um ego ferido e de baixa autoestima tem sua origem em problemas da infância, mais precisamente em traumas no Complexo de Édipo. Essa hipótese não pode ser descartada tão facilmente, contudo, não me parece viável tentar reduzir todas as formas de ciúmes a uma mesma causa singular, já que tudo depende muito da forma como o afetado vê o mundo.

Interessante notar que a presença do ciúme em nossa sociedade é tão marcante que no Antigo Testamento apresenta-se como uma característica divina. O Deus de Israel é um Deus que ama seu povo a ponto de não permitir que mais ninguém o governe e a ponto de ressentir-se pela tentativa de algum de seus filhos em adorar outro Deus.

“Não te prostrarás diante desses deuses e não os servirás, porquanto Eu, o SENHOR teu Deus, sou um Deus ciumento, que puno a iniquidade dos pais sobre os filhos até a terceira e quarta geração dos que me odeiam, mas que também ajo com amor até a milésima geração para aqueles que me amam e guardam os meus mandamentos” (Êxodo 20:5).

Na linguagem evangélica a explicação dada é a de um suposto amor ciumento. Difícil é introduzir este valor dentro de um conceito de um Deus absoluto e onipotente, pois sabendo de tudo, inclusive das causas e seus efeitos, me parece insuficiente crer que este seja um dos atributos de Deus. O movimento da própria consciência humana, que antes acreditava ser o ciúme uma virtude, agora avança e prevê com detalhes todas as suas possíveis consequências negativas, com diz a passagem de Cânticos 8:6, “o ciúme é tão inflexível quanto a sepultura”.

Dentro da tradição judaico-cristã é visto como algo benéfico para o povo eleito, já que toda a narrativa situa Deus como o marido e o povo de Israel como a esposa que o traiu, por isso frequentemente vemos os textos se referirem aos hebreus como, a jovem (virgem) ou a infiel ou a prostituta. Deduz-se que Deus apresente seu ciúme como quem se comporta dentro de uma relação familiar e busca proteger o que lhe pertence. Contudo, muito antes de apresentar-se como uma virtude divina, o ciúme é o cerne para o primeiro homicídio narrado na história da humanidade (Gn 4:3), pelo menos do ponto de vista teológico. Pois foi justamente por ciúmes de seu irmão Abel que Caim tirou sua vida. Por Deus não ter sido tão grato pela oferta de Caim quanto pela de Abel.  A cólera tomou conta de seu Espírito e tomado de loucura, armou uma emboscada para seu irmão e o matou.

Não há dúvidas de que a pessoa que sente ciúmes enxerga o outro como sua propriedade e então diz, “minha mulher, minha esposa, meu filho, meu marido, meu Deus”. O pronome possessivo empregado já denota qual a forma de se definir a relação.

Na vida afetiva sabe-se que há diferenças entre os graus e intensidades de ciúmes entre homens e mulheres. Os homens ao pensarem na infidelidade, de acordo com uma pesquisa realizada em 1992 por Buss e colaboradores (apud SEO, 2005) se veem mais perturbados com a possibilidade de uma traição sexual, já a maioria das mulheres se sente abandonada ao saber que seu parceiro se apaixonara por outra pessoa.

Devido a toda uma tradição paternalista e machista em nossa sociedade mundial, mesmo que inconscientemente o homem tende a ver a mulher como submissa e obrigada a satisfazer as suas vontades. Pois é comum que homens não aceitem uma traição por parte da esposa, mas ao mesmo tempo se deleitariam em um ménage com outra mulher.

O ciúme certamente tem origem muito mais remota que a própria história humana, ele está no campo dos instintos e precede na cronologia a própria linguagem. Contudo, mesmo sendo um sentimento ele se ajusta às condições da vida humana e não se sabe exatamente em que momento o ciúme desposou a propriedade privada. Na modernidade ambos andam de braços dados. Esse sentimento de presumir o outro como minha propriedade e que pode fugir do meu controle, da minha exclusividade, advém da falsa ideia de uma relação na qual o próprio sujeito é o sujeito de todos os acontecimentos.

De forma mesquinha e ignorante justificamos essa posse atrelando-a ao amor. Como se cuidar do ser amado fosse o mesmo que possuir. Ora, o que é possuído já não é mais livre e como pode o amor ser contra a liberdade?

Mas a questão principal é a de uma possível infidelidade. Se existe a chance de o parceiro relacionar-se com outra pessoa, isso não pode ser aceito já que a relação amorosa exige a exclusividade para existir. Atualmente as pessoas não acreditam em amor eterno. O que cada um representa na vida do outro não necessariamente pode incluir um projeto de vida a longo prazo, mas o mero imediatismo, vive-se o agora e a qualquer momento tudo pode se desfazer.

Trata-se de uma era, a maneira de Bauman, com relações líquidas, sem substancialidade para se manterem estáveis. Como consequência, dentro das relações os indivíduos enxergam uns aos outros com sua própria régua. O sujeito sabe que em si ele já não deve um compromisso eterno a ninguém e que pode pular do barco a qualquer momento sem grandes explicações. Diante da sociedade, se for homem, será um ser liberto para novas experiências, se for mulher dependendo de sua condição social pode ser humilhada ou até mesmo gozar de sua autonomia.

O amor romântico é tido como um ideal inalcançável, mas há quem ainda acredite nele. Não há nada que garanta o sucesso futuro de qualquer união conjugal. A pessoa pode ter uma vida construída junto com outra por mais de 30 anos e de súbito, sem mais explicações, abandonar tudo para viver uma aventura passional com alguém 20 anos mais jovem.

Diante dessa volatilidade, as incertezas são mais reais do que antes e o ciúmes tem muito mais campo para se sedimentar. As famílias modernas apresentam-se como empresas, há todo um fluxo de aportes financeiros: paga-se contas, investe-se dinheiro, paga-se funcionários e por fim a balança comercial deve sempre manter-se positiva ao final do mês. Assim, para qualquer um que mantem um relacionamento, mesmo antes do matrimônio há certo investimento financeiro e junto uma ideia de que com essa atitude, parte do que está envolvido passa a lhe pertencer, essa é a lógica do mundo capitalista onde tudo, até o amor vira um produto. O ciúme então mostra-se agora como uma ameaça, um inimigo que pode roubar aquilo que é seu. Mas como lutar contra o ciúme? Como combatê-lo?

Certamente que travar uma guerra contra algo que surge dentro de si não é a melhor estratégia. Não há como eliminar pela força do pensamento o ciúme, pois é um efeito e sua causa está num outro plano, é preciso observar o movimento do ciúme dentro de si, como ele surge, a partir de quais estímulos, é preciso acompanhar o movimento da consciência diante do fenômenos do ciúme, para que haja uma chance do sujeito captar a certeza de que ele mesmo e o próprio ciúme e não algo separado, como uma entidade maléfica que o incorpora.

A mente se autossabota e acredita que é uma vítima de pessoas maléficas, o parceiro que quer lhe trair e o amante que arromba sua morada. Por vezes, essa situação realmente acontece, mas o nosso foco deve se ater ao interior do homem e questionarmos antes mesmo de qualquer traição confirmada, porque o outro se torna tão importante a ponto de causar tamanho estrago dentro de nós? Como pode a atitude de alguém para com outra pessoa causar esse sentimento de perda, de desmoronamento, um rasgo no coração como uma ferida incurável?

O ciúme tem muito de medo e pode produzir quimeras na mente dos homens. Assim, vemos um sem número de homicídios passionais cujo motivo desencadeante fora o ciúme patológico. A pessoa fixa seu padrão mental nessa ideia única, de que o parceiro está prestes a trocar-lhe por outra e não vendo outra possibilidade de solução decide por eliminar a vida de quem afirma amar.

Mesmo em pequenas doses é possível que o ciúme seja desnecessário. Não há qualquer relação deste sentimento com um amor genuíno também. Onde existe cuidado, respeito, carinho, não há lugar para tratarmos o outro de maneira tão pessoal. Se realmente existe amor então não há posse, não há cobranças, não há uma vista que faça do outro alguém dependente da sua vontade. Se realmente existe o ciúme, devemos nos perguntar se de fato amamos tal pessoa, ou se a encaramos como um meio para nossa própria satisfação.