O Espírito e o Tempo

O presente artigo tem como objetivo esboçar uma síntese da obra de Herculano Pires, O Espírito e o Tempo, com ênfase em alguns capítulos em específico, de forma a tentarmos elucidar alguns pontos referentes à nossa evolução.

Ainda mesmo antes das preliminares da obra em questão, o autor, Herculano Pires, cita Heidegger, filósofo alemão, reconhecido internacionalmente e famoso por ter sido conselheiro de Hitler, à época no nazismo. Apesar de seu passado sombrio, a reflexão heideggeriana é válida, pois nos apresenta a estreita relação entre o ser e o tempo. Para este pensador, o homem se determina e se transforma na História.

Por este motivo, reforça Herculano Pires sobre a necessidade de um estudo histórico sobre o desenvolvimento da espiritualidade humana, bem como do mediunismo. Sua obra, “O Espírito e o Tempo”, possui como mola mestra a apresentação histórica deste aspecto e assim o faz de forma brilhante, entrelaçando fatos do mundo real, com a demonstração do aspecto teleológico da realidade e de forma a mostrar quais foram as raízes históricas que permitiram o advento da Doutrina Espírita, codificada por Allan Kardec. “Sem o exame histórico do problema mediúnico, por exemplo, os estudantes de hoje estarão ameaçados de flutuar no abstrato. Introduzindo-se numa ordem de ideias, sem o conhecimento de suas raízes históricas, arriscam-se a confundir, como fazem os leigos, mediunismo e Espiritismo” – Herculano Pires, O Espírito e o Tempo, preliminares.

De forma didática, Herculano dividiu o processo histórico do mediunismo em fases, nas quais ele denominou de “horizontes”. Da forma como foi apresentada, nos traz a impressão de progressos ou se quisermos utilizar o termo, “melhoras” no entendimento racional e nas práticas relacionadas à mediunidade, ao longo do tempo.

Em primeiro plano, Herculano coloca o horizonte tribal, espécie primitiva de relação do mundo corpóreo com o extra físico. Os fenômenos apresentam-se de tal ordem que os seres humanos à época da pré-história criam em emanações místicas provenientes de objetos, animais ou até mesmo plantas. Tratava-se de uma carência de entendimento naquilo que se manifestava, havia o entendimento de ser uma força misteriosa, mas por outro lado já se compreendia que tais forças eram Espíritos, ou seja, seres desmaterializados.

Herculano cita Kardec mais especificamente no “O livro dos Espíritos” no que se refere à Lei de Adoração. Não somente de uma revelação dos Espíritos Superiores, mas também uma comprovação histórica de tal assertiva, pois nunca se encontrou um sequer coletivo humano que não tivesse a crença em Deus. Sabe-se que o oposto, ou seja, o ateísmo, é um fenômeno raro na história da humanidade e uma prerrogativa dos homens modernos e contemporâneos, que bebem continuamente da fonte filosófica no niilismo, do individualismo e do materialismo.

O segundo “horizonte” apresentado pelo autor é o “agrícola”. Trata-se da condição mediúnica de certos povos humanos que já haviam passado historicamente da fase da barbárie e que já haviam evoluído o suficiente para controlar o cultivo de plantas e animais e enfim desenvolver a agricultura. Este aspecto foi essencial para a humanidade, pois deixamos de ser nômades, ou seja, transitar sem residência fixa em busca de alimento e água para a sobrevivência. Portanto, com a agricultura que se desenvolveu no chamado “Crescente Fértil”, Rio Tigre, Eufrates, e toda a mesopotâmia mais posteriormente, o homem fixou-se à terra e pode direcionar sua energia criativa para o que conhecemos como cultura.

Nas tradições mais remotas, cita Herculano Pires o exemplo dos egípcios, observa-se historicamente a criação de uma série de mitos, deuses que ocupavam funções específicas e até mesmo sistemas místicos para explicar a ordem do mundo.

Certamente que houve uma avanço neste sentido, pois que as comunicações com o plano espiritual já se davam de forma mais sistematizada, contudo, tornaram-se embotadas de ritos, objetos sacros, crenças das mais diversas, todos adornos criados pela imaginação, primeiramente pela incompreensão, segundo pela necessidade de coadunar  a presença dos Espíritos às suas necessidades cotidianas.

Ainda no horizonte agrário, Herculano cita a representação do Deus-agrário, pois a divindade acaba por se adequar ao modo de vida de tais civilizações. As questões da ressurreição, bem como da virgem-Maria são mostradas como exemplos típicos. Cita-se também a relação de Deus com a periodicidade das estações climáticas. Assim, para aqueles que viviam no campo, a fé foi alicerçada muitas vezes na crença das interferências de forças superiores na providencia das chuvas, assim como o maná mosaico; ou na garantia de fecundidade em épocas de colheitas.

No “horizonte civilizado” a humanidade entra numa fase mais cultural, pode-se dizer assim, racional; de forma que as comunicações revelam um caráter mais direto, quase que exigindo uma linguagem própria, para que haja mais clareza. As relações com o plano dos Espíritos nesta fase tornam-se institucionalizadas. Cita Herculano, o desenvolvimento das linguagens teológicas que se formaram em diferentes partes globo. Como exemplo, retoma os gregos, que após um apogeu filosófico nos séculos que antecederam a era cristã, acabaram por deixar suas heranças para os descendentes do Império Romano. Assim, as religiões passaram a fazer parte do Estado, politicamente entrelaçados.

No campo das comunicações observou-se por exemplo o advento dos oráculos e representantes entre os deuses e os homens, cita Herculano: “Nos Estados Teológicos, a estrutura política assemelha-se à estrutura metafísica ou divina. A Religião e o Estado se modelam reciprocamente, uma sobre o outro, e vice-versa. A classe sacerdotal, racionalmente organizada, elabora os mitos no plano intelectual, criando a teologia, estruturando ritualismo, estabelecendo a genealogia dos deuses e as formas de relações entre estes e os homens”.

A relação da espiritualidade com a política apesar de historicamente tensa, possui aspectos positivos, já que civiliza, traz a cultura para os povos que antes encontravam-se no “horizonte tribal”. O animal instintivo que antes cedia a todas as suas paixões, passou a tornar-se um sistematizador de valores espirituais, dando vazão ao desenvolvimento dos contratos sociais, ou seja, a formação de leis e códigos jurídicos para controlar as relações entre as pessoas. Estes aspectos são cruciais para nos atentarmos quanto ao salto dado em relação aos horizontes anteriores e o quanto a interferência do plano espiritual exerce gradativamente transformando nossa forma de agir no mundo.

O horizonte profético em seguida é apresentado como a fase histórica na qual a mediunidade se individualiza. Na tradição hebraica encontram-se diversos profetas, representantes das revelações divinas para o povo de Israel. De fato, o que se observa é a unanimidade do conteúdo de todos estes profetas que, cada qual com seus textos, sempre concordavam em desenvolver a moralidade do povo. Certamente que tais profetas recebiam suas inspirações através de transes mediúnicos, como se sabe uma função comum a qualquer ser humano, com diferentes graus de manifestações e desenvolvimento.

Por fim, apresenta Herculano o horizonte espiritual, no qual o individuo já se reconhece como Espírito imortal, e no qual o grau das comunicações se torna mais inteligível e claro. Com esse substrato na evolução da mediunidade há condições também para o surgimento da Doutrina Espírita e todas o entendimento da natureza do mundo espiritual e sua coevolução com o mundo material.

Outro ponto importante a ser mencionado é a ruptura com os velhos padrões religiosos. Herculano traça uma crítica às representações de diversas religiões, não citando nenhuma em específico, mas de forma a mostrar a inutilidade de toda a roupagem fenomênica encontrada em cultos, preces, ritos, vestimentas, imagens, adornos.

Dessa forma, ao analisarmos as diferenças encontradas no Espiritismo em relação aos arcabouços religiosos, observa-se um nítido amadurecimento na questão da eficácia de todas estas parafernálias. No Espiritismo, a razão fala com propriedade, e uma vez entendida a natureza do Espírito e uma vez apurado o conceito de Deus, não mais se mistura crendices com o mundo real. Em outras palavras, nada, absolutamente do que se utiliza na religiões tradicionais funciona para aprimorar ou estabelecer um real contato com Deus. Justamente porque não há nada no mundo material que exerça influência na transformação moral do indivíduo. Para conseguirmos tal proeza são necessários outros meios, que passam pelo crivo da educação e do tempo.

Assim, Kardec ao apresentar o pentateuco Espírita, não nega de forma alguma tudo o que estava nas escrituras há quase 2000 anos. Pelo contrário, vem reafirmar tudo o que já fora revelado à humanidade, porém utiliza-se de um poderoso filtro, o da moralidade, de forma a extrair apenas estes aspectos dos evangelhos, os quais nos previne de perdermos vital energia em melindres fatídicos como acontece nas demais vertentes cristãs.

No capítulo V, Herculano discorre sobre o termo Falange do Consolador. Como já se sabe, Cristo prometeu que enviaria um Consolador para nos ensinar novamente as mesmas lições, e para que não ficássemos desamparados nesses novos tempos. A Doutrina Espírita, no entanto, se apresenta como o próprio Consolador e certamente que é, pois identificamo-nos o seu caráter tríplice: religião, filosofia e ciência. Além disso, presta-se a nos instruir sobre todos os ensinamentos de Jesus, mas agora com uma nova linguagem; passados vinte séculos a humanidade não se encontra desassistida, desamparada, mas alicerçada pela presença do Cristo entre nós, na figura deste Consolador.

Jesus trabalha incessantemente, isso é fato. Contudo, dentre todas as necessidades evolutivas do globo, muitas são as funções e inúmeros são os trabalhadores requisitados. Assim, Cristo conta com um sem número de Espíritos, seus colaboradores e muitos dos quais participaram direta ou indiretamente para a realização da Doutrina Espírita na Terra. Allan Kardec foi o codificador, sua esposa sempre o auxiliou neste processo, haviam dezenas de médiuns que serviram de instrumento para a árdua pesquisa; no plano espiritual não podemos sequer saber quantos foram os colaboradores que se esforçaram e elaboraram o conteúdo tão rico que nos fora revelado.

Entre tais expoentes, não podemos deixar de citar o Espírito Verdade, assim denominado quando perguntado seu nome por Kardec. Não há na literatura Espírita um consenso sobre sua personalidade. Seria Jesus? Seria um grupo de Espíritos? Não importam tais amiúdes quando o mais importante é reconhecermos a envergadura moral que se manifesta até nós e o real auxílio que estamos a receber.

Na terceira parte da obra, o autor trata do “Triângulo de Emmanuel”, uma análise comparativa entre os três aspectos da consciência apresentados por Kant: a razão teórica, a razão prática e a estética, em comparação com os três aspectos do Ser, a saber: Espírito, perispírito e matéria. Retrata Herculano que os aspectos da consciência refletem na estrutura do homem trino, uma concepção típica do Espiritismo. O movimento da dialética na história, desde os horizontes tribais nos levaram a esse patamar epistemológico, no qual se entende o homem na sua integridade. Apesar desta perspectiva trina, não se deve correr o risco de mergulhar numa visão cindida da realidade, como se o homem fosse constituído de três partes distintas, o que na verdade não ocorre. São aspectos ternários, mas contidos na unidade do Ser. Assim, o homem antes de tudo é indivíduo, e na própria etimologia da palavra encontra-se sua condição de indivisibilidade, pois aquilo que é um é como uma mônada à moda leibniziana.

No capítulo seguinte no qual trata sobre a filosofia do Espírito, Herculano analisa as possibilidades do determinismo e do livre-arbítrio na história. Será que de fato existe o livre-arbítrio, se na verdade estamos escravizados a um mundo ou sistema de causas e efeitos em cascata? Segundo o item 843 do “O Livro dos Espíritos”, existe uma liberdade no nível do pensar, mas que constantemente se vê cerceada pelas condições determinadas pela materialidade, pelas leis que regem o mundo físico. Para Kant, a liberdade é impossível, já que não se pode conhecer o objeto na sua totalidade, não se possui acesso à coisa em si, mas somente ao fenômeno. Para Kant, toda metafísica está inacessível por uma questão de limite do conhecimento humano, entretanto, o espiritismo contesta tal visão filosófica, uma vez que a liberdade é a própria condição da existência humana. Talvez mesmo no ateísmo de Sartre, devamos concordar com ele ao afirmar com o homem está desde sempre “condenado a ser livre”.

Dentro do movimento dialético nada pode-se negar em definitivo, assim determinismo e livre arbítrio de certa forma caminham juntos, sendo impossível a existência de apenas um isoladamente. Uma observação mais atenta nos revela que a vontade desencadeada pelo livre-arbítrio é geradora imediata de novas determinações, não sendo ainda possível afirmar o oposto por falta de uma investigação mais profunda.

Em sequência, Herculano aborda o tema da “Religião em Espírito e Verdade”, que de certa forma se interliga com o capítulo seguinte sobre a destinação da Terra como um mundo de regeneração. O homem aos poucos, na medida em que se depurar moralmente, em que deixar de se envolver com as alegorias do misticismo, do folclore e das religiões ritualísticas, acabará por desenvolver nova relação com sua vida espiritual. O significado do termo sacrifício será modificado também e o ser humano entenderá o poder de transformação aplicado toda vez em que deixar de visar somente o seu bem egocêntrico.

Quando o conceito de Deus se transformar como na visão Espírita, em “Inteligência Suprema”, “infinitamente Justo e Soberano”, não teremos mais a necessidade de solicitar para que Ele interfira em nossa vida pessoal, para nos conceder desejos e conquistas. Nestes tempos, não haverá mais religiões como conhecemos habitualmente e então todo culto terá como fonte os mais nobres sentimentos do coração, não somente na liturgia, mas a cada segundo de nossa existência, o que é mais fundamental. A vida espiritual deve permear todo o nosso cotidiano e se o bem sobrepujar o mal em proporção, estaremos numa nova fase de nossa evolução, na qual passaremos a habitar um planeta que trabalha para se recompor de todo o mal causado a si mesmo.

Após analisar sobre aspectos da prática mediúnica, os quais não me aprofundarei aqui, em seu último capítulo Herculano nos assinala as qualidades do que entende por Antropologia Espírita. Certamente com uma visão única, mas totalizante, a doutrina Espírita enxerga a natureza humana não somente com os olhos materiais, mas também levando em conta toda a embriologia, pode-se dizer assim, do Espírito ao longo do tempo.

A Terra, em sua perspectiva, é um purgatório. O local onde devemos expiar nossas imperfeições passadas. Mas é somente um estágio no infinito. De forma didática, classificou os seres em seus processos evolutivos, como a seguir:

1.°) a ascensão dos minerais aos vegetais;

2.°) dos vegetais aos animais;

3.°) dos animais aos homens;

4.°) dos homens aos anjos.

É certo que no nível em que nos encontramos, os mais importantes estímulos para a nossa ascensão vêm do campo da educação. As influências de Pestalozzi foram cruciais na forma como se moldou a Doutrina Espírita e segundo Herculano é imprescindível que se desenvolva no âmbito da formalidade, a construção de escolas Espíritas, que sejam capazes de aplicar esta mesma pedagogia nesta obra apresentada. A Escola Espírita só pode corresponder a esse nome se representar o novo tipo de Educação determinado pelos princípios Espíritas. Essa Nova Educação só pode ser definida por uma Pedagogia Espírita”. Para a escola Espírita, afirma Herculano, é fundamental que se compreenda o aluno como um Espírito reencarnado e que necessita de uma formação para aperfeiçoar todos recursos que poderá levar consigo para futuras existências, em suma todo o corpo de conhecimento da Doutrina.

A leitura desta obra de Herculano Pires é de fundamental importância para todo estudante e praticante do Espiritismo. Numa linguagem simples e inteligível nos apresenta uma síntese histórica e filosófica da evolução do Espírito humano, desde a antiguidade até chegar aos tempos modernos. Ao mesmo tempo, se aproveita deste delineamento para estabelecer as bases da única ferramenta capaz de moldar o homem, a educação; agora em seu caráter de cristianismo essencial, ou seja, o que se entende por pedagogia Espírita.

BIBLIOGRAFIA

PIRES J. HERCULANO. O Espírito e o Tempo. Introdução Antropológica ao Espiritismo. 3ª Edicão. Editora Cultural Espírita. 1977.