A Gênese kardequiana

Quando se busca o entendimento sobre as revelações divinas à humanidade, é preciso um olhar minucioso sobre a forma como elas se manifestam. Segundo a Doutrina Espírita, mais precisamente na Gênese de Allan Kardec, Capítulo I, o que pode Deus transmitir aos homens é a Verdade sobre a existência das coisas, ou a forma de funcionamento dos sistemas, ou melhor, o significado do Ser, do existir.

O homem avança progressivamente e conforme evolui percebe que é através do conhecimento que tais revelações chegam até nós. Mas de que tipo de conhecimento estamos a falar? Pode-se questionar se Deus diretamente poderia se comunicar com certos homens, como foi no caso de Moisés diante da sarça ardente, no Monte Sinai. A Doutrina Espírita não se atreve a dar uma resposta singular a esta questão, entretanto, elucida que o mais provável é que Espíritos superiores, que já conhecem Deus em sua essência, sejam os responsáveis por nos trazer certas informações.

Fundado na metafísica cristã, que engloba a multiplicidade das existências, a reencarnação e a pluralidade dos mundos, entre outros aspectos, tais dogmas não são de forma alguma, simples teorias desenvolvidas, mas repousam na mais sólida necessidade racional, para aqueles que minimamente já conhecem o infinito, contido no próprio finito. Em outras palavras, o que se sustenta é o uso da razão como baliza, como ponto de referência para determinar a Verdade das coisas.

Filosofia, Religião e Ciência são o caráter triplo que define a Doutrina Espírita, e trabalhando em consonância, estes três pilares da epistemologia humana garantem uma revelação fundada não somente pela obra de um só homem, mas de toda uma coletividade.

A Primeira Revelação bíblica, atestada por Moisés foi singular, pois apenas ele teve contato direto com a fonte emissora dos 10 Mandamentos. A Segunda Revelação, a do Cristo, também foi individual, pois que somente Jesus detinha o conhecimento direto da natureza de Deus. Já a Doutrina Espírita promove a confirmação das duas anteriores, mas traz o caráter da concordância experimental ou até mesmo numa leitura contemporânea, de uma concordância estatística. Diferente de Moisés e Jesus, a Doutrina codificada por Kardec é um corpo cognoscente de diversas assertivas idênticas e processadas por um incontável número de médiuns ao longo do globo. Estes, não se conheciam mutuamente, mas ao serem questionados os Espíritos, sobre as mesmas questões em diferentes partes do mundo, obteve-se as mesmas respostas. Por isso, esta Revelação, além de tratar da religiosidade, em conjunto utiliza-se da ciência, pois ao edifica-la Kardec partiu de um método experimental.

Em termos do pensamento filosófico ocidental à segunda metade do século XIX, a Europa encontrava-se permeada de ideias materialistas e ateístas como as de Nietzsche, Freud e Darwin, cada um em sua área do conhecimento, um na filosofia, outro na psicanálise e o terceiro na biologia, mas atestando sempre para o niilismo, para o nada ou o acaso como motor da realidade. Ora, mas o nada não cria, não produz e diante de um vácuo em possibilidades para contestar o novo pensamento vigente, a espiritualidade maior trouxe para nós a Doutrina Espírita, como Revelação de caráter triplo, com uma roupagem mais adequada e racional às mesmas ideias já abordadas por Cristo há quase 2.000 anos.

O conflito entre o criacionismo e a evolução já é secular e parece não ter fim entre os mais fundamentalistas. De um lado, a versão bíblica sobre a gênese do mundo, de outro a ciência, que se coloca como detentora do conhecimento prático e incontestável. Mas de qual dos dois lados estará a verdade?

Aristóteles, filósofo grego, apresentou-nos o “Princípio da não-contradição”, que afirma que algo não pode ser e não-ser ao mesmo tempo, no mesmo espaço. Ou seja, ou os criacionistas ou os evolucionistas possuem a razão e nunca os dois ao mesmo tempo. Será isso mesmo? Apenas se ambos estiverem tratando do mesmo campo de investigação.

Portanto, se analisarmos com calma, veremos que a ciência, pelo menos até o presente momento trata apenas das questões físicas e não consegue analisar nada do campo da espiritualidade. Por outro lado, as escrituras nos revelam sobre as Verdades espirituais do homem, que em suma são as verdades morais, uma outra dimensão da nossa existência.

Mesmo assim, a ciência é muito útil ao Espiritismo, pois que a codificação foi composta por Kardec através de métodos experimentais, como já tratado anteriormente neste mesmo texto. Além disso, toda a continuidade, toda a evolução possível da Doutrina pode ser analisada, decomposta em partes pelas observações das incontáveis manifestações espirituais.

Immanuel Kant, filósofo alemão, famoso por sua obra “Crítica da Razão Pura”, afirmava nesta mesma obra a impossibilidade de se conhecer os objetos da metafísica, como: a alma, Deus, a liberdade, pois são conceitos que se encontram fora das percepções, fora do mundo sensível.

Será que Kant se enganou? Pois é possível averiguar as manifestações daqueles que não mais possuem corpo material e que ainda assim são mentes pensantes como nós. É possível medir, calcular, concluir sobre todas as assertivas. Assim, a ciência é sempre um auxiliar para que o homem possa elucidar as leis que regem o funcionamento integral da realidade, físico e espiritual em sua totalidade.

A questão dos fluídos espirituais e os meios pelos quais os Espíritos se utilizam para manipulá-los também é tema a ser abordado em nossos estudos. Certamente que como toda substância do mundo tangível, os fluidos também estão submetidos às certas leis. Justamente utilizando-se de tais conhecimentos é que o Espírito imprime a vontade do pensamento, de forma a dar-lhes forma, função e qualidades tangíveis às percepções de seres que também são de natureza fluídica.

As combinações fluídicas de natureza espiritual, podem ser de dois tipos, a saber:

1. Consciente, quando há a intenção deliberada de criar determinado objeto, com suas qualidades específicas.

2. Inconsciente, quando a formação é simples produto de um pensamento qualquer do Espírito.

Na atmosfera psíquica em que se encontram, o pensamento toma forma e se mostra a outras entidades também espirituais. Enquanto na vida material jamais temos acesso às mentes das pessoas, no plano do Espírito tudo se mostra com mais clareza, sendo fácil enxergar as intenções, o caráter de cada um.

Também pelo mesmo processo de manipulação fluídica, pode um Espírito moldar e transformar seu perispírito para uma determinada aparência. Geralmente utilizam-se desta faculdade ao se tornarem visíveis aos encarnados. Em sua manifestação sensível aos olhos materiais, podem surgir com certa vestimenta, adornos e apresentando-se com traços mais jovens ou velhos, dependendo de sua intenção.

Para um conhecedor dos fundamentos, caso se encontre diante de uma vidência, saberá de antemão que não se trata do Espírito como é em si, não se trata de ver diante dos olhos uma natureza determinada como antes era o corpo material. Trata-se apenas de um fenômeno sensível aos olhos, para lhes dar mais clareza e sentido; trata-se apenas de uma aparência produzida pela mente do desencarnado.

Feita tal distinção, para que não se turbe a razão, cabe em suma, ao Espírita, dar-se conta de sua posição enquanto ser pensante, pois sendo de tal natureza, estará a todo instante envolvido em tais fluidos, cujos destinos e efeitos serão de sua responsabilidade.

Pode-se fazer uma analogia entre o pensamento e sua ação nos fluidos espirituais com o som e sua ação no ar atmosférico. O som em sua natureza é uma onda mecânica que propaga pelos gases de nosso ambiente produzindo diferentes condições de pressão, de forma que ao atingir nossos ouvidos, possa ser traduzida pelo equipamento cerebral em sons inteligíveis.

Da mesma forma, age o pensamento sobre os fluidos, contudo com certas diferenças. Pode-se neste caso, imprimir o que no mundo material seriam as reações químicas, pois o pensamento imprime qualidades aos objetos criados, forma e função.

O pensamento dado, naturalmente reflete no próprio perispírito sua condição. Funciona como um espelho, deixa exposto para todo aquele que estiver apto, a perceber suas intenções, seu grau de moralidade, enfim seu caráter. No texto analisado, encontra-se o exemplo do homicida que no plano físico não mostra qualquer sinal de suas inclinações, contudo, em seu períspirito expõem claramente o ato no qual tem intenção de praticar.

Cabe relembrar Paulo de Tarso quando afirma que somos cobertos por uma multidão de testemunhas. Essa assertiva milenar retrata fielmente esta característica fluídica do perispírito que garante não ser possível o escape diante de nós mesmos, aos olhos da espiritualidade. Além disso, nos alerta para a natureza deste envoltório fluídico que nos cerca e que estará intimamente relacionada ao nosso grau de esclarecimento, de adiantamento moral. O que somos, o que fazemos, nossas falhas e acertos são incorruptíveis quanto aos seus graus de realidade. Não há como corromper nossa personalidade atual, seja ela qual for. Sejamos firmes e fortes na fé raciocinada, para assumirmos o que já está exposto no perispírito, condição primeira é reconhecer a precariedade, para em seguida marchar rumo a dias melhores.

A Teoria da Presciência é tratada também na Gênese kardequiana, no capítulo XVI. Como pode o homem ter conhecimento sobre o futuro? Como é possível saber sobre o que ainda não aconteceu? A princípio esta questão possui um cunho místico, como se houvesse alguma possibilidade de trabalhar no campo do surreal. Pode-se supor também que alguém contenha poderes sobrenaturais, capazes de dar-lhes acesso ao conhecimento que a princípio pertence somente a Deus.

O que nos faltava era o esclarecimento das leis naturais embutidas em tais fenômenos. Hoje em dia, pode-se facilmente prever se choverá dentro de poucos dias, ou se haverá calor ou frio. Tais previsões são possíveis, pois os meteorologistas têm conhecimento sobre as causas e sobre seus possíveis efeitos combinados. Não há nada de sobrenatural, nada de mágicas ou poderes miraculosos, usa-se somente o saber do método científico, muito eficaz aliás, para fazer quaisquer tipos de previsões.

Da mesma forma, as verdades espirituais podem ser previstas com antecedência por alguns homens e ou Espíritos. Trata-se de um sentido e que através da mediunidade pode manifestar o que certos Espíritos já conhecem, devido aos seus próprios esforços pelo saber.

A mola mestra abordada no texto de Kardec é o ângulo de observação. Enquanto nos encontramos na matéria, nossa visão é limitada, os sentidos nos detêm e os olhos biológicos somente enxergam pequena parcela da realidade. Dizem os Espíritos que ainda nos falta um sentido. Este mesmo que nos permitiria visualizar nossa condição atual como parte de um processo que tende sempre aperfeiçoar-se.

Na época de Kardec, o pensamento filosófico vigente já não mais aceitava uma teleologia do mundo. Isto significa que para a maioria dos intelectuais da época, o mundo não possuía uma finalidade, a história não caminhava para lugar algum, e por fim, o sentido da vida era nulo. Para muitos, uma angústia, para outros o caminho para a liberdade, obviamente ilusória. Neste sentido, Kardec publica suas obras em aproximadamente 10 anos, justamente num momento histórico em que necessitava de uma fonte com autoridade o suficiente para afirmar que a vida caminha para o progresso e este é o destino de todos nós, queiramos conscientemente ou não.

Existe sim uma finalidade para o mundo e assim marchamos. Tal assertiva só pode ser fundada por aqueles que podem ver todo o processo, aqueles que compreendem nossas misérias como parte de um plano divino para a emancipação de toda a humanidade. Não sem razão fomos criados simples e ignorantes. Portanto, é preciso ajustar sempre as lentes para analisar as situações como os olhos do Espírito e não somente nas necessidades imediatas da matéria.

Os Espíritos nos influenciam, nos inspiram, e desta forma o homem pode trazer grandes feitos à humanidade, como a simples invenção da roda ou a descoberta do fogo. A qualidade do que se pode prever ou até mesmo sua utilidade prática, depende de nosso adiantamento, pois que se não tivermos lucidez suficiente, só poderemos prever ou intuir daquilo que está em nossa zona habitual. Para que haja previsões importantes sobre o destino do mundo, por exemplo, é preciso que tal pessoa esteja em sintonia com Espíritos elevados e que estes estejam dispostos a utilizá-lo para um fim útil.

No Antigo Testamento encontramos dezenas de profetas, entre eles: Daniel, Elias, Ezequiel, Isaías, Zacarias, mas na atualidade também temos os nossos profetas, que nos trazem a revelação dos valores espirituais. São aqueles que prezam pelo saber virtuoso, filósofos, poetas, escritores, atores, músicos e sem dúvida, os professores, que pelo amor à  vida em todas as suas instâncias nos revelam as crises, as paixões, os amores e falam sobre o destino próximo da humanidade, sempre a partir de uma clara leitura do momento presente, compreendo as causas atuais para visualizar com clareza quais as próximas consequências.

Último capítulo da Gênese kardequiana aborda grandes transformações que estão por vir num futuro próximo. Há quem acredite que se trata de um evento sobrenatural com a intervenção direta de Deus para aniquilar os injustos e trazer a glória para suas fiéis ovelhas. Contudo, o Espiritismo nos atesta que este estado de mudança dar-se-á de outra forma.

Primeiramente, o que se espera é um processo lento e gradativo que não ocorrerá em instantes, pelo menos em nossa escala temporal. Tais mudanças devem ocorrer no sentido moral e possuir um caráter universal. Não apenas um povo ou certa região do globo, mas todo o planeta Terra estará sujeito a este processo. Deus em sua sabedoria infinita determinou Leis para o funcionamento do universo e entre elas encontra-se a Lei de Progresso, na qual todos os seres estão destinados à processos evolutivos. No caso da humanidade em seu estágio atual, a transformação necessária é da moralidade. Como angariar valores como fraternidade, perdão, amor ao próximo e benevolência? É preciso tamanha lucidez para que a própria consciência possa se convencer de moldar-se nestes valores. A soma de todos os possíveis valores morais é o que se chama de virtude, ou vida virtuosa. Diante de nossas imperfeições, o homem destina-se a melhorar-se sempre, em escala infinita e disto não pode abster-se.

Assim, os novos tempos vindouros prometem melhores condições para humanidade. A Doutrina afirma que gradativamente os Espíritos viciosos serão substituídos por outros, contudo, não se pode cair em erro e afirmar que serão enviados para castigos ou penas eternas. Pelo contrário, ao viverem junto a Espíritos mais esclarecidos, a cada reencarnação ele mesmo será moralmente mais instruído e contribuirá para uma humanidade renovada.

A Terra atualmente encontra-se em estágio de provas e expiações, pois esta é a condição geral de seus habitantes encarnados e desencarnados. O futuro de nossa morada é avançar para outro nível, no qual seremos um planeta de regeneração, onde ainda haverá o mal, mas não predominará nos corações e mentes dos homens. Estaremos então em condições de quitar definitivamente nossos débitos anteriores e então marchar para uma sociedade mais fraterna e justa.

Por outro lado, o texto também nos alerta que haverá certamente uma separação entre o joio e o trigo. Aqueles Espíritos endurecidos, insistentes em habitar em zonas inferiores da atmosfera psíquica, serão enviados para mundos inferiores, não em caráter de punição, mas para que habitem em zonas condizentes com seus estados vigentes. Terão condições de refletir melhor sobre suas escolhas, ao mesmo tempo em que poderão contribuir para o progresso de tais mundos ainda arraigados em muito sofrimento e paixões aniquilantes.

Os Espíritos autônomos, conhecedores das Verdades Eternas de Deus, do amor como motor da vida, da caridade como veículo para a emancipação individual e coletiva, estes permanecerão na Terra e a transformarão em um lugar semelhante às Verdes Pastagens do Salmo 23 ou até mesmo à Terra Prometida onde Moisés nunca pode pisar. Será um mundo feliz, com seus habitantes todos unidos no mesmo propósito, na mesma união, na certeza de que a virtude é sempre o maior tesouro.

Bibliografia

  • Kardec, Allan. A Gênese – Os Milagres e as Predições Segundo o Espiritismo. Tradução da 5ª edição francesa: GUILLON RIBEIRO. FEB – Federação Espírita do Brasil. Versão digital por: ERY LOPES. © 2007.