Sobre a dor
A estrutura biológica do corpo humano é composta de sistemas, entre eles, o sistema nervoso que conduz estímulos externos através de seus neurônios aferentes, percorrendo um intrincado caminho de conexões, na forma de impulsos nervosos.
Todas as percepções dos sentidos são conduzidas por estes feixes de células, entre elas, a dor. O homem enquanto um ser no mundo precisa se relacionar para viver, para se determinar em vários aspectos, seja na linguagem, no comportamento, no mercado, na cultura; e é justamente neste contato com os outros e com os objetos do mundo que surge a dor.
Ela surge como um fenômeno que perturba a alma, abala de tal forma que causa um sofrimento, de graus infinitos, desde a mais branda cócega até as dores mais insuportáveis que se possa imaginar. Sem dúvida que a ideia de dor, causa medo. Pois o homem possui dentro de si um instinto de preservação que o faz lutar para estar afastado o máximo possível da dor, como se a não-dor fosse a condição da felicidade.
Essa visão é apenas uma das possíveis formas de se encarar a relação com a dor. Existem pessoas que de fato se acostumam com a dor e sentem prazer em tê-la em seu convívio. Por exemplo, lutadores em seus treinos são acostumados a suportar a dor de tal forma que com o passar do tempo a intensidade do sofrimento causado já não é mais a mesma.
Esse resultado mostra apenas ou reforça o fato de que a dor não possui como causa nada que seja externo. Pode-se pensar ser um absurdo tamanha afirmação, pois não se pode negar que impactos de objetos em nossos corpos venham a nos causar danos nos órgãos e até mesmo nossa extinção, contudo, independentemente da causa exterior, vale relembrar que a dor é um processo interno do Espírito. Não há quem possa sentir a dor de outrem, não há como ver, perceber, nem mesmo sofrer junto com ninguém a sua própria dor. Ela foi colocada como uma possibilidade na vida humana, para um mergulho nas relações mais íntimas do ser, em outras palavras, a dor é companheira da solidão, pois senti-la é estar isolado do mundo.
Mas ainda permanece a questão, por que existe a dor?
Do ponto de vista da lei de conservação dos seres vivos, é notório que a dor se estrutura como uma adaptação da espécie para se precaver de males causados ao próprio corpo. A dor então é um sinal, muito menos que um mal, é neste sentido algo bom, pois avisa sobre um perigo iminente. Quando sentimos uma dor de dente, ir ao dentista e tratar uma simples cárie é muito mais prudente do que aguardar a dor se intensificar e perder o dente devido a um canal desnecessário.
Por outro lado, o sofrer causado pelo contato com o mundo nem sempre serve para nos alertar de algum malefício, pode ser um meio para que se passe para outro nível de dificuldade, em qualquer ação que se execute.
Quem se propõe a estudar matemática para passar em um concurso também sofre, mas são dores da alma; o cansaço, o esforço do raciocínio, a pressão, a ansiedade, a incerteza do sucesso e, justamente no enfrentamento da ameaça é que se pode criar a condição necessária para se fazer o que antes era um limite.
Para um corredor, a dor é uma companheira constante. Ele deve estar a todo momento ajustando seu equilíbrio e se adaptando com dores que surgem em várias partes do corpo durante todo o trajeto. E então percebe que sem a dor não há como efetivar seu treinamento.
As dores físicas para quem se exercita são meios pelos quais o corpo estimula a produção de endorfinas e hormônios que produzem diversos efeitos no organismo, seja no estímulo do sistema imune, seja na produção de músculos, seja no metabolismo de toxinas. Portanto, mais uma vez concebe-se a dor não somente como uma punição, mas dentro de toda a ordem da existência com o seu devido papel.
Entretanto, as dores não físicas são as mais presentes nas vidas dos seres humanos e as mais difíceis de se lidar. Nesse campo, diferentemente de uma dor de garganta, que se deseja eliminar o mais rápido possível, é preciso outro tipo de relação, é melhor dialogar com a dor, entender o porquê de sua presença em certo momento de nossas vidas; de forma que o mais importante seja o processo de convivência com a dor e não sua simples destruição.
Porque sofremos a dores da alma como: a angústia, a tristeza, a mágoa, o medo a depressão, a culpa? Infelizmente elas não podem ser acalentadas como os dores do corpo através de analgésicos ou calmantes. Estão no nível da consciência e precisam ser tratadas então com as ferramentas adequadas.
As causas daquilo que se manifesta no interior só podem estar no mesmo âmago do ser. Assim, mesmo que soe desproporcional, cada um é o único responsável por suas dores. Não que sejamos tolos, não que seja uma forma simples de jogar a culpa naquele que sofre, mas analisando as afecções humanas, a origem de todo sentimento humano está nele mesmo e em mais nada.
Spinoza, em sua obra “Ética”, Terceira parte, quando discorre sobre os afetos humanos, afirma que um mesmo objeto pode causar diferentes afecções em diferentes pessoas. Ou seja, o mal que se atribui a certo objeto não está nele, mas em uma estrutura interna de cada indivíduo que, na relação com algo externo, pode ou não produzir o fenômeno da dor. Um mesmo beliscão pode não doer nada em mim e ser um grande sofrimento para uma pequena criança. Uma ofensa de um filho pode não soar tão maléfica para alguém que já está acostumado a ouvir palavrões todos os dias, mas para um pai ou mãe mais tradicional, pode ser algo equivalente a uma facada.
As dores se apresentam em diversos níveis e talvez uma das mais difíceis de se entender seja a dor de uma doença terminal. O que se passa na mente de uma pessoa que sabe que está prestes a falecer? A certeza de um fim iminente é aterrorizante, mas talvez apenas para quem não está nesta condição. Pois que fora do medo produzido pela mente, o que se passa é apenas um processo natural. E essa dor do fim que está próximo, da certeza de que as experiências do mundo material não mais se repetirão, varia muito de pessoa para pessoa. Para os mais apegados à matéria com certeza é uma tortura semelhante ao inferno, já para aqueles que possuem suas mentes atreladas à grandeza infinita da vida, a morte próxima é somente uma libertação e nada há de prejudicial.
Há dores que sabemos serem transitórias, como o ditado popular que afirma: “Não há bem que sempre dure, não há mal que nunca acabe”. Por outro lado, as dores morais, essas não atingem os órgãos dos sentidos, mas são capazes de destruir alguém mesmo que ainda permaneça vivo. O exemplo condizente é o de alguém que perde um filho. Esse tipo de acontecimento não possui atenuante, muitas vezes pela vida inteira. A dor causada é tamanha a ponto de se questionar até mesmo o sentido da própria existência. Mas porque Deus sendo bom e justo permite que alguém passe por tais situações?
Antes de qualquer justificativa, me parece que não há outro caminho a seguir senão a resignação e aguardar que o tempo faça a sua parte. Pois que nossa compreensão ainda é limitada diante dos acontecimentos na vida. Tudo o que se mostra aos olhos, aos ouvidos, tudo o que tem um começo no espaço e no tempo há de desaparecer, mas as pessoas enquanto Espíritos imortais, jamais. A incerteza, que é desconhecimento do real, gera o sofrimento, pois que o mal como afirmava Agostinho, é a negação do ser e o ser a substância pensante que conhece a si mesmo. Qualquer perda, mesmo se sabendo sobre a vida após a morte, é claro gera um mal estar, pois vemos diante de nós a aniquilação de um ser biológico que atuava na matéria, entretanto, naquele mesmo processo de relação com a dor, entendendo, dialogando ao invés de tentar extermina-la, pode-se ver que a dor há de ser neste caso, somente a saudade que fica.
Portanto, a dor é um fenômeno criado pela mente. Tem sua utilidade como já vimos, mas quando se trata das dores morais, além de ser um aviso, ela nos visita com o intuito de nos fazer crescer, aprender. Em analogia, a dor do parto é fulminante, mas ao final traz a vida ao mundo.
A dor que sentimos com certeza é como uma navalha que corta, talvez sangre, mas lapida e dá forma. E quando nos encontrarmos no momento posterior ao seu enfrentamento, nos veremos mais cheios de vitalidade, mais resistentes, não mais a vendo como puro sofrer, como se Deus fosse injusto ou algo similar, mas compreendendo seu caráter educativo e de renovação constante.