Recomeço

Dizem ser a morte a única certeza de que temos em vida. Isso nos diz que ela é somente a consequência natural de um processo. Morrer é parte da vida e não necessariamente o seu fim.

A vida orgânica como conhecemos, formada por células, tecidos, órgãos, sistemas, sociedades, tudo isso está numa realidade provisória. Mas estará a totalidade da existência sujeita às mesmas vicissitudes?

No Antigo Testamento, o Tetragrama Sagrado YHWH, utilizado como referência ao Deus de Israel, tem como significado “Eu sou aquele que é” ou “Eu sou o que sou”. Este exemplo teológico é de grande utilidade para racionalizarmos sobre o que é “ser”. Deus é imaterial, não é feito de um corpo orgânico, mas ele existe mesmo assim. Surge então o questionamento se nossa existência está limitada à vida material?

Todas as religiões na face da Terra tratam da questão da vida após a morte. Possuem diferenças, como por exemplo, os católicos que creem em apenas uma vida corpórea seguida de um julgamento para a eternidade com possíveis destinos no Céu ou Inferno; ou os Espíritas, que professam o dogma da pluralidade das existências com várias reencarnações que orientam a evolução do Espírito.

A continuidade da vida após a morte sempre foi um tema em pauta desde as mais remotas civilizações. Os egípcios tinham por dogma a imortalidade da alma, mas com um período de aproximadamente três mil anos entre duas encarnações, durante o qual habitariam corpos de animais.

Virgílio, poeta romano clássico, em sua obra Eneida, após descrever as recompensas do Elísio e penas do Tártaro, local para onde são levados os pecadores, afirma: “Todas essas almas, depois de terem, por mil anos, levado a existência naquelas paragens, são chamadas por Deus, em numerosos enxames, ao rio Létis, a fim de que, privadas de suas lembranças, voltem aos lugares superiores e conexos – e comecem a sentir desejos de tornar aos corpos”.

Platão, um dos mais célebres filósofos gregos era defensor da vida após a morte: “A natureza é governada pela lei dos contrários. E, pois, visto que a noite sucede ao dia, é de rigor que à morte suceda a vida. Além de que, se exnihilnihil, os seres que vemos morrer não podem deixar de voltar à vida, porque, do contrário, tudo acabaria absorvido na morte – e a natureza seria um dia o que é o Endimião”.

Pitágoras, filósofo e matemático grego nascido por volta de 570 a.C., cria na passagem das almas pelos infernos durante o período de mil anos; mas admitia por outro lado o retorno à nova vida corpórea e humana. Sua filosofia consistia, pois, na multiplicidade das existências como comprova o trecho a seguir: "Todos os Seres intelectuais são sujeitos às mudanças cujo princípio existe neles. Aqueles, cujos costumes não sofrem, senão ligeiras alterações estão sempre sobre uma superfície quase de nível. Os que sofrem alterações sensíveis, para o mal, são precipitados nas regiões subterrâneas, chamadas inferno, onde são perseguidos por terrores, por sonhos funestos que os conturbam. A alma, porém, que faz progressos notáveis, por uma vontade firme, se o progresso foi para o bem, recebe grandes distinções e passa a uma habitação das mais felizes. Se, porém, o progresso foi para o mal, vai habitar um lugar conforme com o seu estado.”.

A teologia druídica, pertencente a sacerdotes e filósofos de origem Celta, considerava a vida na Terra como uma passagem para mais altos destinos, sendo cada um de seus habitantes, sujeito às provas que tivesse merecido para avançar.

Santo Agostinho, no livro I das Confissões, medita da seguinte forma: “Antes do tempo que passei no seio de minha mãe, não terei estado em outra parte e sido outra pessoa?”.

Jesus ao ser interpelado por Nicodemos sobre a vida futura respondeu-lhe: "Em verdade, em verdade te digo: ninguém poderá ter o Reino do Céu, sem renascer de novo".

Todos estes exemplos citados acima são apenas fatos históricos ou teológicos que representam o pensamento de um indivíduo ou grupo, de forma que, a existência da vida após a morte continua sendo um dogma, pois não há como prova-la experimentalmente.

Como então ter certeza de que a morte não é o fim? Na verdade, não há esta certeza, pelo menos por enquanto. Não da forma como queremos. É possível a comunicação com pessoas já falecidas para questioná-las sobre como é viver sem um corpo, contudo, trata-se ainda da descrição de alguém e não da nossa própria sensação da vida fora da matéria.

Queremos conhecer a morte, mas simultaneamente a tememos. Não há como conhecer algo, mantendo-se precavido. O conhecimento de sua natureza ainda não está no campo das experiências cerebrais. Nosso desejo é de trazê-la para o campo do que é conhecido, para termos tranquilidade quanto ao porvir; de forma que nossa angústia não é pela passagem em si, mas em relação ao que nos aguarda do outro lado.

Para conhecer a morte não é preciso morrer, afirma Krishnamurti em sua obra “Comentários sobre o viver” – Volume 02. Necessário é abster-se de resistir a ela, de analisar, de sofrer antecipadamente e principalmente de exigir da vida qualquer tipo de garantia sobre o que há na morte. De certa forma, as religiões se prestam a esse serviço, confortar e dar garantia aos vivos quanto ao futuro que nos aguarda e por isso são tão atraentes.

Como se dá a transformação da vida em morte e da morte em vida, isso é um mistério para seres com sentidos orgânicos como nós, mas o seu caráter de renovação é irrefutável. Felicidade é algo que se busca vivo ou morto, entretanto, existe a possibilidade de não encontrarmos seres angelicais do outro lado, tocando harpas num clima de paz duradoura. O pânico diante do desconhecido faz a mente criar mecanismos de fuga: crenças, esperanças, rituais.

E de que tudo isso adiantará se nos afastarem da real natureza da morte? A verdade não pode ser aterrorizadora; a morte desconhecida é a verdade inexorável. Não precisamos defini-la como um ser obscuro, de capas pretas e carregando uma foice. A morte nos levará à Verdade, à consequência natural de nossas escolhas, à justiça segundo o merecimento.