Nietzsche virou profeta?
A existência de Deus é um pressuposto da filosofia desde os tempos da Grécia Antiga. Antes dos primeiros filósofos que passaram a investigar os princípios universais da natureza, Thales de Mileto, Anaximandro de Mileto, Pitágoras de Samos, Heráclito de Éfeso, toda a mitologia pagã era composta de inúmeras divindades.
Aos poucos, como em um processo de evolução da consciência, a ideia de Deus foi tomando forma no pensamento humano. Primeiro se mostrou como a própria natureza, para depois mostrar-se mais apurada caracterizando-o como um Ser absoluto, único, imutável, causa primeira de todas as coisas e soberanamente bom e justo.
Entretanto, existe um abismo entre o conceito de Deus na mente humana e Ele mesmo. Quais as certezas que temos, seja pela filosofia, seja pela religião, de que o discurso de Deus é equivalente à Sua própria essência?
Por tratar-se de um Ser incomensurável cuja natureza não se assemelha a nada que tenha as propriedades transitórias da matéria, muitos filósofos na história colocaram em dúvida e existência do divino.
Leibniz já afirmava que Deus é um ser necessário e que sua ideia implica em sua existência; a certeza sobre Deus não pode ser atestada do ponto de vista da experiência sensível. Contudo, para outros pensadores, mais precisamente para Nietzsche, filósofo alemão nascido em 1844, todas essas afirmações não passam de loucura.
Criado numa rígida educação cristã, cursou teologia e filologia na Universidade de Bonn. Religioso por formação, porém atestou seu ateísmo fervorosamente já que sua filosofia destrincha todo o seu ódio ao cristianismo.
Para Nietzsche, não há fraqueza maior na face da Terra do que a compaixão, esse termo de cunho cristão, que nos exorta ao perdão diante das falhas alheias. Para ele, todo fraco deve ser eliminado como acontece nos processos de seleção natural descritos por Charles Darwin. Ele também via na figura de Platão e Sócrates, os filósofos gregos da metafísica e defensores da imortalidade da alma, o início da decadência na filosofia.
Em sua obra o Anticristo, logo em seus primeiros capítulos trata da definição do que é bom e do que é mau. Ao invés de concordar com a bondade segundo Paulo de Tarso, que defende ser longanimidade, caridade, tolerância, Nietzsche afirma que o bom é o exercício do poder, para em seguida conceituar o mal como tudo o que seja a par da fraqueza. Destrincha todo o seu ódio contra Paulo de Tarso e o acusa de ser um dos responsáveis pela morte do Evangelho, já que pregava a salvação através do Cristo ressurreto. A defesa da vida após a morte era algo que incomodava muito Nietzsche, pois via neste aspecto do cristianismo um enfraquecimento de toda a sua potência, já que o gozo, a glória, a felicidade, teria sua realização não aqui na Terra, mas em outro plano existencial.
A compaixão, portanto, apresenta-se como uma afecção à maneira do que é fraco, é vista necessariamente como um mal. Esse modo de encarar a vida influenciou diversos outros filósofos que o seguiram, entre eles Martin Heidegger, que se utilizou de suas ideias para desenvolver sua visão do Ser no mundo, o Dasein e, em consequência tornar-se o pensador de Hitler e responsável em grande parte pelo estrago que o nazismo causou ao mundo.
Nietzsche tece toda a sua crítica contra uma certa elite cristã, que se utiliza da moralidade para promover certa lavagem cerebral nas massas. O certo e o errado, as condutas retas e os valores cristãos que eram defendidos refletiam em grande parte um poder para amansar a verdadeira criatividade humana. A santidade defendida pelas religiões cristãs vigentes causava certo desconforto em Nietzsche. Justamente porque a castidade, a pobreza, a privação, tudo se mostrava muito distante dos comportamentos humanos cotidianos, algo no campo do imaginário e mais uma vez a cegueira do homem diante de sua forma de agir no mundo.
Na mesma obra já citada, Nietzsche exalta a ciência do século XIX e as teorias biológicas que passam a caracterizar o homem como uma máquina. Deixa-se de lado qualquer concepção espiritual, não somos mais dotados de razão e substância pensante à maneira de Descartes e nem mesmo somos seres morais como propunha Kant.
No capítulo 11 de sua obra o Anticristo, Nietzsche mais uma vez refere-se a Kant e critica seu imperativo categórico que diz: “é dever de toda pessoa agir conforme princípios dos quais considera que seriam benéficos caso fossem seguidos por todos os seres humanos: se é desejado que um princípio seja uma lei da natureza humana, deve-se colocá-lo à prova, realizando-o para consigo mesmo antes de impor tal princípio aos outros”.
Assim, para Kant, agir moralmente é antes de tudo um dever. Sermos honestos somente por conta de uma lei externa que nos coage não é correto, nem mesmo deixar de sermos honestos porque temos vontade. Diante da vida ética o homem age porque tem de ser feito. Contudo, para Nietzsche isso faria de nós “autômatos do dever”, em sua interpretação, uma afronta à dignidade humana, pois como se curvar diante de uma lei universal, quando podemos ser livres para sermos injustos e impiedosos?
A crítica de Nietzsche por vezes se mostra ambígua, pois em certos momentos ataca os valores essenciais defendidos pelo Messias e sua própria relação com o caráter divino, e em outros foca toda a sua guerra contra os homens que se dizem cristãos. Afirma inclusive que o Evangelho morreu na cruz, pois toda a interpretação posterior se mostra na verdade um delírio.
Alguns pontos podem-se ressaltar, entre eles, o papel do padre, do sacerdote, que na verdade havia sido abolido pelo próprio Jesus em sua doutrina. Cristo foi um dissidente do semitismo tradicional e discordava veementemente dos ensinos dos escribas e dos fariseus. Na doutrina original não haveria mais para o homem a necessidade de um intermediário, já que toda relação espiritual se tornara individual e interior.
Cria-se então todo um sistema de recompensas e punições através do medo imposto pelo destino futuro do homem, o Céu ou o Inferno. Certamente à maneira de Nietzsche uma teoria do conhecimento que nos leva à insanidade. Com esse tipo de lavagem cerebral, o homem deixa certamente de aprender sobre sua vida moral, não como pensa o filósofo, como algo inventado, mas alienando dentro de si o trabalho do amadurecimento de uma vida ética.
Todo sistema religioso para Nietzsche é a própria fraqueza e em certo nível faz sentido. Afirma que todo crente é um escravo; não pode pensar, não pode decidir, não pode duvidar, pois que a própria incerteza se tornou um pecado.
Outra questão preponderante é a representação cristã ortodoxa ou católica de um Jesus crucificado. Certamente que foi, mas nesses modos ele é relembrado não por ser um homem vivo, potente e vigoroso como era, mas morto, sangrando e sofrendo, como se todo o sentido da vida cristã fosse esse mesmo. Sofrer diante de um corpo que se torna imundo, doente diante dos sentidos que cegam a certeza, diante de uma razão como a de Pascal, contaminada pelo pecado original.
Todos esses aspectos foram incorporados na história pelo que conhecemos como o Estado Cristão. Desenvolveu-se em certo período da história e claro, entre seus efeitos encontra-se a sociedade atual. Uma análise detalhada nos leva a concluir que o cristianismo verdadeiro foi deturpado ao longo desse processo, seja pela palavra que foi alterada, seja por todas essas práticas ditas cristãs e que na verdade são a sua negação.
O erro de Nietzsche foi não ter se conhecido como Espírito, assim sua crítica se tornou paradoxal para si mesmo. Em certos momentos afirma o valor inigualável de Jesus na sua forma de viver, mas sucumbe quando não enxerga que os erros dos cristãos não invalidam a verdade absoluta manifesta pelo Filho do Homem, é como se não tivesse nenhum sentido concreto.
Certamente que a implosão de um Deus antropomórfico, cheio de paixões e desejos nos foi de grande valia, mas cabe ressaltar que toda descrença é pura hipótese improvada. Não se trata de delinearmos um discurso contra o ateísmo, mas de analisar historicamente quais as consequências do abandono da divindade nossas vidas.
O niilismo expressão filosófica para designar todo esvaziamento do sentido da vida, toda a destruição na natureza humana, ironicamente para Nietzsche é a própria caridade. Ele tenta inverter os papéis ao sugerir que o homem deve abandonar o amor ao próximo para tornar-se um tirano, em suas palavras: “os fracos devem ser destruídos”.
Sem o Espírito, sem o amor, sem o Eu, Deus também acaba por desaparecer da vida humana. Sua presença de torna desnecessária, pois como Adão e Eva no paraíso, agora somos, ou pelo menos tentamos afirmar a nossa autossuficiência, quase ontologicamente sendo os criadores de nós mesmos.
Até que ponto podemos caminhar no mundo estando cegos ao fato de que não somos tão independentes e muito menos somos o ápice da inteligência do universo? A implosão dos valores morais continua crescente em nossa sociedade, amar o próximo torna-se lentamente um percalço ao sucesso da individualidade; a intolerância e os discursos de ódio continuam a dividir os homens e a promover a morte, em suma, continuam a reafirmar que Deus está ausente. Será mesmo que podemos viver alheios ao sagrado? Será que Deus morreu? Será que Nietzsche virou profeta?