Prefácio A Fé e a Razão
Tínhamos um sonho, o sonho da pureza total. Tudo o que fosse considerado sujo deveria ser eliminado: vírus, bactérias, vermes e parasitas, inclusive qualquer pessoa que viesse a ferir a nossa escolha de sermos limpos. Sujeira é uma palavra que vibra negativamente. Lembra doenças, pobreza, miséria, descaso, abandono e, certamente nós que podemos comprometer o nosso bem-estar nos misturando a ela, precisamos de todos os recursos modernos para combatê-la.
As favelas, por exemplo, são locais de muita criminalidade. Lá vivem pessoas convivendo com muita sujeira, ratos e fezes que boiam nos córregos que passam no fundo de suas moradias. Este é o exemplo de uma das maiores imundices da humanidade e também o maior exemplo da nossa vontade em extirpar todas as pessoas que podem interferir na nossa nobre qualidade de vida. Quem mora em favela já é segregado socialmente só pelo fato de ser favelado, um conceito que já o define como indivíduo. Não importa seu nome ou virtudes que tenha, antes de tudo ele será sempre um favelado. Será uma pessoa suja que para ser aceita por seus semelhantes deverá passar pelo crivo de uma série de instituições como escolas, igrejas, hospitais e prisões, até que ele mesmo possa se convencer de que é necessário tornar-se uma pessoa limpa.
Este sonho não se tornou realidade porque graças ao Universo entrópico, a sujeira não fica quietinha no seu lugar preestabelecido, acaba voltando e, lamentavelmente mistura-se novamente entre todos nós, os agentes da limpeza, sempre reconhecidos entre si pela brancura impecável. Não se pode eliminar uma sujeira inexistente que só incomoda aqueles que se preocupam com o seu próprio umbigo.
Parece que somos livres porque decidimos viver na brancura. Mas nunca fomos tão prisioneiros quanto agora porque somos prisioneiros de nós mesmos. O que vale mais, um futuro seguro e regrado ou um futuro inseguro e sem regras? As incertezas para o amanhã estão deixando o homem desesperado, ninguém se preocupa com o que será legado para as gerações futuras porque nem se sabe se tais gerações existirão. Hoje se paga uma fortuna em seguro de vida, em seguro residencial, em seguro de automóveis, mas o medo ainda persiste. Ninguém pode assegurar nada porque não temos o controle da situação, não temos sequer o controle de nós mesmos.
No contexto de salve-se-quem-puder não há um apoio, um referencial para se guiar, pois ninguém confia mais em seu semelhante. Será que Deus morreu? Será que Nietzsche virou profeta? Este mundo tornou-se um pasto de bois que só conseguem olhar para si mesmos e nunca vão encontrar nada. E quem de fato são os bois? Ora, somos todos nós sem exceção, inclusive este que vos escreve. Diante deste quadro deprimente somos todos autores, somos todos pessoas ainda muito atrasadas no que se refere à vida em sociedade.
Qualquer ser humano capaz de compreender que sua ignóbil lucidez não é a força maior deste Universo sabe também que a vida de um narcisista é uma vida de solidão, a antivida. O homem moderno está pendendo para o isolamento. O número de pessoas que moram sozinhas aumenta cada dia mais e as relações humanas se volatilizam. Hoje em dia até pratica-se sexo pela internet com uma câmera e um microfone.
O sentimento também está desaparecendo e muitas pessoas procuram os especialistas com uma angústia crônica: acabam seus relacionamentos afetivos e não conseguem sentir nada pelo próximo, nem sequer desprezo. O homem necessita reencontrar a si mesmo, mas o que é preciso para tanto? Livros de autoajuda, massagens, terapias orientais, religiões?
Na verdade, precisamos menos disso, do que nos enfiarmos no meio da sujeira, aquela que fede e impregna nos cabelos e na pele. Quem sabe no meio dela poderemos encontrar um pouco de sinceridade, esperança, um raio de vida. Não pregava Jesus entre os moribundos, os coxos e os cegos? Não dizia Ele que quem necessita de médicos não são os de boa saúde?
Eu ofereço o presente trabalho a todos os irmãos da grande família humanidade na certeza de que o produzo em retribuição à maior glória que já recebemos: a vida e o amor de Deus. Convido vocês a mergulharem nesta delicada relação entre o Criador e a criatura e os instrumentos utilizados para tanto: a fé e a razão. Não falo da fé na qual o homem julga ser o ser supremo de si, mas daquela que nos liberta da pobreza mental, daquela que nos põe lado a lado com qualquer irmão. A fé que dialoga e se fortalece com a razão em quaisquer circunstâncias da existência.