Suportando-vos uns aos outros
A figura de Paulo de Tarso é fundamental na história do cristianismo. Não do ponto de vista dogmático de qualquer religião, mas atentando-se primeiramente a sua forma de conduzir a vida na Terra. Ou seja, tomando a vida cristã não na sua forma mitológica, mas enquanto episteme, conhecimento do real. Paulo não conheceu o Cristo em carne, mas somente alguns anos depois de sua crucificação, quando a caminho para a atual Síria, teve uma visão, um encontro com Espírito do Mestre, que de forma sucinta o chamara para o Apostolado.
Assim, como muitos cristãos da chamada Igreja Primitiva, Paulo era um judeu convertido, contudo, antes de sua conversão, foi inclusive responsável por uma perseguição sangrenta à vários cristãos, culminando com o assassinato de Estevão, considerado o primeiro mártir do cristianismo e cujo episódio está relatado nos capítulos 6 e 7 dos Atos dos Apóstolos.
Este homem que muito perseguira pessoas inocentes, transformara-se em uma das mais importantes peças na propagação das obras evangélicas por toda a Grécia, Macedônia e Império Romano. A maioria dos discípulos do Cristo até então estavam a trabalhar prioritariamente na região da Judéia, Palestina, e pelo fato de levar a fé viva para aqueles que não eram semitas, foi chamado de Apóstolo dos Gentios.
Apesar de não ter convivido com o Mestre, Paulo foi certamente uma das figuras históricas que mais encarnou seus ensinamentos. Não se trata apenas de incursões teóricas, filosóficas, pelo contrário, ele sacrificou a si mesmo em favor dessa obra fenomenal. Assim, após o encontro nas estradas de Damasco, Paulo iniciou diversas missões e, nas regiões em que passava, fundava novas comunidades cristãs.
Para continuar mantendo contato com os novos aprendizes, Paulo escrevia epístolas, textos escritos na forma de cartas, mas sem o direcionamento específico para uma certa pessoa. Além disso, as epístolas continham racionamentos, ensinamentos, exortações direcionados de forma mais geral para toda a comunidade.
Em uma de suas epístolas, mais precisamente na endereçada aos Colossenses 3, capítulo 3, Paulo faz uma necessária distinção entre os objetos da consciência voltados para as aspirações materiais e aqueles que são frutos do homem espiritual. Pois que a mente deve se ater em conceder prioridade para as coisas de são do Alto. Certamente este termo “Alto” não se refere a um ponto superior no espaço, mas aos valores elevados, moralizados.
A crítica nos tempos atuais com certeza avança sobre um suposto dogmatismo religioso contido nessas exortações paulinas. De certa maneira a autoridade sobre aquilo que é moral, perdeu muita força ainda mais quando todo o sentido na vida humana se prende ao sucesso profissional, sucesso financeiro, carreiras, família, etc. Pode-se também tentar descontruir as coisas do “Alto”, afirmando que cada um é livre para viver a vida como quiser, sem qualquer imposição, sem qualquer discurso que venha a nos moldar. Por fim, a crítica também pode incidir sobre uma certa abstração daquilo que se diz do “Alto”, como se fosse algo inalcançável, como se cuidar do Espírito fosse algo totalmente alheio aos problemas que passamos no mundo ou algo metafísico imponderável.
Vista as possíveis visões opostas, consequências de um pensamento dialético, sigamos para não mais uma opinião, mas para a descrição precisa e inequívoca do que é o “Alto”.
O homem é Espírito, substância pensante imaterial, cuja natureza primeira não se encontra nos fundamentos da matéria. Sendo assim, para quem se conhece como tal, podemos avançar compreendendo que sendo nós um ser “feito” de operações mentais, a saber: raciocinar, sentir, pensar; existe, portanto, uma hierarquia entre os objetos do nosso conhecimento.
Seria inútil tentar gastar todo o nosso tempo nos ocupando de tudo o que é terreno, a saber: posses, títulos, carreiras, dinheiro, fama, corpo, sendo que nada disso é permanente.
Quem não se conhece como Espírito, pensa de forma equivocada que os atributos do Espírito também são descartáveis, concluindo que todo saber moral também será extinto com a morte física.
Sendo assim, devemos é claro fazer a distinção entre aquilo que é do “Alto” como sendo os atributos que não estão no exterior, mas que uma vez inclusos, fazem parte do próprio Ser. De forma que a honestidade, por exemplo, não está dissociada do homem honesto, sendo um e outro uma só unidade.
Mas Paulo deixa claro que as coisas elevadas, pertencem não a qualquer modo de vida, mas àquele em Cristo. E o que significa viver em Cristo? Trata-se não de nos colocarmos em grau superior a qualquer outra pessoa dizendo “Eu sou Cristão”, mas compreendendo a necessidade de reformar a si mesmo. Esqueça dos outros, não julguemos a vida alheia, pois cada um prestará contas pessoalmente a Deus, já que nenhum átomo se move nos Cosmos sem o Seu consentimento. Enquanto Espíritos, é nosso dever transformar nosso interior e nada mais.
Santificar a vida é o ensinamento de Paulo aos Colossenses. Ninguém é perfeito, domar os desejos não é nada trivial, há quem diga que não se pode controlar as emoções e de certa forma isso é real, pois passa-se anos a fio em psicólogos e terapeutas tratando-se de traumas diversos.
Mas é uma questão de destreza da consciência também. Uma espécie de potência, de força interior. Ela precisa ser lúcida o suficiente para não ser fanática, cega, mas ao mesmo tempo distinguir o que é impuro e o que deve ser evitado.
Não se trata de nada exterior, por exemplo, para quem procura uma prostituta, a meditação reta é aquela que não julga a prostituta como impura, pelo contrário, ninguém sabe como foi colocada em tal circunstância. E cabe lembrar que Jesus se assentava com elas, não para fins sexuais certamente. É preciso antes perceber que toda poluição, toda corrupção existe, não no exterior, mas dentro do homem.
E, portanto, cabe em seguida perceber que para atingirmos certa condição da mesma lucidez já mencionada, é preciso dizer não para certas coisas mundanas. Sem julgar quem delas se deleita, mas isentando a si mesmo de qualquer participação com “a prostituição, a impureza, o apetite desordenado, a vil concupiscência e a avareza, que é idolatria”.
Tudo isso precisa-se evitar, não há o que discutir, pois as consequências sempre mortificam o Espírito, que se torna inerte para com os verdadeiros tesouros da vida. Na sua sabedoria infinita, Deus articulou todos os acontecimentos para se auto renovarem em suas crises.
De um lado então, existe toda a humanidade na sua condição atual, nua e crua. Somos assim, não há o que fazer: mentirosos, assassinos, falsos, corruptos, infiéis. Somos tudo isso, mas também somos muito de Bom, pelo menos em potência. Então para que toda essa calamidade humana criada por nós mesmos possa ser vencida, para que haja uma força suficiente para destruir gradualmente toda a iniquidade que somos nós mesmos, não há outra alternativa senão essa vida a qual Paulo tanto se dedicou, uma vida inteira voltada para Cristo.
E se prestarmos atenção em todo o seu conteúdo, veremos que deixou de lado todo o seu conforto, a mulher a quem amava, seus títulos, carreiras como doutor da Lei em Israel; simplesmente fez de si mesmo um “trapo” humano, não no sentido pejorativo, enfim, para que o mundo conhecesse o que é o Amor em Cristo.
O amor em Cristo é diferente do Amor do Cristo, pois que o segundo também é louvável, mas o primeiro brota dentro de cada homem e então todas as sombras e todos os pecados são aniquilados.
Um sinal de maturidade para qualquer pessoa adulta é o refinamento de sua capacidade de perdoar. Precisamos trabalhar melhor esta relação, assim colocaremos mais uma vez o perdão como algo mais fácil de se exercer e também na condição de um valor da vida adulta, sinal de segurança, tranquilidade para tratar com questões de prejuízos trazidos a nós pelos outros.
Em outras palavras, Paulo trata dessa mesma questão no versículo doze da mesma epístola, quando afirma: “Revesti-vos, pois, como eleitos de Deus, santos e amados, de entranhas de misericórdia, de benignidade, humildade, mansidão, longanimidade, 13 suportando-vos uns aos outros e perdoando-vos uns aos outros, se algum tiver queixa contra outro; assim como Cristo vos perdoou, assim fazei vós também. 14 E, sobre tudo isto, revesti-vos de amor, que é o vínculo da perfeição. 15 E a paz de Deus, para a qual também fostes chamados em um corpo, domine em vossos corações; e sede agradecidos”.
Sem sombra de dúvidas, não há como confundir o caráter dessa santidade a qual devemos nos revestir. Que não troquemos a verdadeira santidade por rituais exteriores, prescrições religiosas, rezas, missas ou algo semelhante. Pois que apesar do valor cultural que temos por essas coisas, o único meio de santificar a nós mesmos é no exercício sofrível do amor. Digo sofrível não porque a dor faça parte do amor, mas porque quando se decide por este caminho sublime, encontra-se muitas dificuldades para realiza-lo.
De forma prática, basta observarmos o grau de discórdias e desavenças que povoam nossos relacionamentos, seja família ou fora dela. Não é preciso conhecer as minúcias das vidas de todas pessoas, mas sabendo sobre a nossa forma ainda infantil de querer a todo instante afirmar o ego, o Eu cindido, é fácil saber que em qualquer lugar as pessoas não se entendem facilmente.
O outro que não conseguimos compreender também é um Eu para si, e nós somos um outro para ele. E nesse jogo de consciências o que fazer diante das emoções que emanam dos conflitos diários? São incontáveis as situações, desde o irmão que pede dinheiro emprestado e não devolve, ao companheiro do lar que abusa de seu próprio filho. Essas situações extremas existem e se tornam cada vez mais comuns, mas o que dizer daquela que pessoa que te irrita a paciência, todos os dias de sua vida, a ponto de você se convencer de que prefere não tê-la mais no convívio a continuar passando tamanho estresse? O que fazer diante de tal situação? E o que fazemos habitualmente? Há diálogo ou há discussão? Há concessão de ambas as partes, entendimento ou acusações e julgamentos?
Como aceitar a convivência com uma pessoa de má índole que vive uma vida fútil? Antes dessa questão é preciso meditar: Como posso eu determinar que tal pessoa é de má índole e tem uma vida fútil? Quais os critérios que se usa para chegar a tal conceito de alguém? Portanto, não importa como vivem os outros, que não haja reprovação, controle, invasão do livre arbítrio e nenhum tipo de proibição a comportamentos sejam qual forem. Façamos a nossa parte pelo exemplo, mas que cada um responda por si mesmo por seus atos. E nós que pensamos viver como Santos, mas não temos a condição de falar nada de ninguém, para não vivermos como mortos é de nosso dever praticar a tolerância, a compreensão, que não significa ficarmos inertes sem nada agir, mas antes de tudo ver no outro o reflexo de nós mesmos. Que não haja a hipocrisia de apontar um vício no outro, sendo certo de que padecemos todos dos mesmos males. Muito mais aventuranças existem no reconhecimento de nossa precariedade espiritual, de forma coletiva, pois o que o outro é, o sujeito também é. E nesse sentido o dever é suportar o fardo da nossa ignorância mútua, seja essa a esperança daquilo que de fato pode transformar as sombras em luz.
O homem é ainda espiritualmente uma criança e diante de todas as nossas fraquezas morais já mencionadas, é natural encontrarmos muita discórdia entre aqueles que deveriam viver pacificamente.
O caminho passa pelo exercício da educação, para essas questões não aquela educação escolar, institucionalizada, mas aquela que nos move com a força para corrigir todo caminho tortuoso. A violência nada resolve, pois na sua raiz não tem a capacidade de ordenar e nem mesmo poder para nada.
De forma que a única vida que faz sentido é aquela que Paulo viveu. Não para vivermos exatamente como ele viveu, mas para que tenhamos a caridade como o maior valor em nossas vidas. Toda justiça que buscamos, todo poder verdadeiro que o mundo não conhece, capaz de renascer o próprio homem, toda a Glória que Cristo nos outorgou; está no exercício deste amor incondicional, que como diz Paulo, nos faz suportar uns aos outros, um perdão à maneira de como Cristo nos tratou, ou seja, com a capacidade de amar sem nunca ter fim.