Sobre os juízos
A todo instante estamos agindo no mundo. Estar vivo em certo aspecto implica em relacionar-se com tudo o que seja exterior e também interior. Somos dotados de uma propriedade da razão, o que na filosofia define-se por entendimento, mas que por sua vez possui outras instâncias de organização das informações, ou seja, não é ainda o conhecimento em si.
O entendimento é uma apreensão do Espírito sobre o significado do que seja o real. Na modernidade a ideia de um entendimento universal não mais persiste, pois se admite que cada pessoa pode apresentar um entendimento em diferentes graus. Por isso não é apropriado misturar o entendimento com o saber, já que o conhecimento presume em si um casamento com a verdade.
Para que o entendimento se estruture da mente humana algumas ferramentas são necessárias, entre elas, a linguagem. É sabido que ao longo da evolução humana, a linguagem é algo que se desenvolveu, ou seja, apresentou etapas nas quais observou-se ganho de complexidade na formação de conceitos.
Se anunciamos a palavra “cadeira”, por exemplo, temos em nossa mente o surgimento do conceito referente a tal objeto, com todas as suas propriedades e significações. De certa maneira, o conceito de “cadeira” possui sua universalidade, pois que diferentes pessoas compartilham da mesma ideia, condição essa que possibilita inclusive a existência da linguagem. Caso contrário, jamais poderíamos ser compreendidos uns pelos outros, justamente devido à impossibilidade de nos referirmos às mesmas coisas.
Os conceitos são como vimos a ideia objetiva ou subjetiva de algo, mas para que a relação linguística de estabeleça é preciso que a consciência crie relações entre conceitos, é o que chamamos de juízo. De forma sucinta, quando relacionamos dois conceitos, um terá a função de sujeito e o outro de predicado, como em qualquer formação simples de uma oração.
Segundo Immanuel Kant, filósofo alemão, existem os juízos analíticos, quando o predicado não acrescenta nada na condição do sujeito, pois já está incluído na ideia do próprio sujeito, como por exemplo, quando dizemos “Todos os corpos são extensos”. A extensão é propriedade da matéria, portanto, tal afirmação soa até mesmo como um pleonasmo (redundância). Existem também, segundo Kant, os juízos sintéticos, quando de forma oposta, o predicado acrescenta um novo “saber” sobre o sujeito, como por exemplo quando dizemos: “Os corpos são pesados”. O predicado “pesado” não faz parte do conceito de “corpo”, assim apresenta-se como uma propriedade não antes conhecida. Trata-se, portanto, de uma relação de conceitos, trata-se, portanto, de um juízo.
Há um terceiro tipo de juízo, aquele que mais nos interessa em nossas investigações do presente artigo, mas que também não deixa de manter a estrutura de sua essência como sendo a relação de conceitos; segundo Kant, o juízo de valor. Estabelece uma avaliação sobre a qualidade do objeto, estabelece também todos os nossos valores morais sobre determinada ação humana. O juízo de valor também opera sobre a qualidade estética dos objetos, como por exemplo a beleza de uma certa obra de arte.
Uma questão importante no campo da filosofia é se há um absoluto universal quanto aos conceitos estéticos. Existe o Belo sem a relativização dos diferentes pontos de vista humanos? Se perguntássemos sobre a impressão estética da Mona Lisa para dezenas de pessoas, especialistas e leigos, o que diriam? Provavelmente encontraríamos uma heterogeneidade das respostas, e isso muito seria devido aos diferentes conhecimentos e visões de mundo. Poderíamos então concluir que o conceito de Belo é relativo e que depende de fatores intrinsicamente culturais?
Esta investigação é importante para pensarmos o lado moral de nossas vidas, pois poderia o certo e o errado também serem colocados a mercê das opiniões? Difícil para nós estabelecermos as relações entre os conceitos morais sem muita atenção, pois podemos mergulhar em trevas mentais, achando que temos a certeza da razão, de que temos dentro de nós o absoluto juízo de nós e das outras pessoas.
Não há um segundo sequer sem que passemos estabelecendo juízos sobre tudo o que nos depara. Faz parte da fisiologia mental do ser humano, mas por outro lado, qual seria a percepção de que o Espírito tem de seus próprios mecanismos? Nossos juízos funcionam de forma automatizada, pois foram condicionados ao longo de nossa presente existência. Podemos observar que tais juízos possuem vícios que trazem um entendimento parcial da realidade? O que estou a discorrer é sobre a forma na qual habitualmente julgamos como as pessoas são.
Somos muitas vezes insuportáveis e conosco mesmo, porque parece não ter fim o condicionamento mental que emite um juízo moral constante sobre os outros, de forma a criar em nossas mentes uma realidade irreal, na qual tudo funciona na base da dicotomia certo/errado, na luta constante entre o que é o que deveria ser.
Porque temos tanta dificuldade em aceitar as pessoas como elas são? No campo da psicologia veremos a elucidação desta questão, pelo menos em parte, quando tomamos esse padrão mental do juízo como uma projeção. Quando alguém afirma que o outro é uma pessoa difícil, chata, cheia de defeitos, o que isso significa a respeito de si mesmo?
O problema desses juízos é se manifestarem como um comportamento infantil na vida adulta, são um entrave para a própria evolução do Espírito. Vemos esse tipo de conduta, esse tipo de juízo infantil em várias instâncias da sociedade, na família, nas escolas, no trabalho e na política. Se fosse apenas um comportamento inocente, inofensivo tudo seguiria seu curso, contudo, apesar de infantil, possui o caráter da patologia e traz consigo muita dor e sofrimento.
Esse juízo parcial é responsável pelas maiores tragédias humanas. Há homicídios causados pelo juízo equivocado entre cônjuges, há inocentes que perdem suas vidas, pois são julgados pela cor da pele, há os que são excluídos devido à sua escolha sexual, há os que são excluídos por serem obesos, por serem idosos, por serem mulheres, por serem estrangeiros, por serem doentes, por serem magros, por serem jovens, por serem fortes, por serem fracos, por serem ricos e por serem pobres, enfim, uma esquizofrenia generalizada entre nós.
Precisamos com máxima urgência refletir sobre os ensinamentos de Cristo contido no Evangelho de Matheus, capítulo 7, versículos de 1 a 5:
“Não julgueis, para que não sejais julgados.
Porque com o juízo com que julgardes sereis julgados, e com a medida com que tiverdes medido vos hão de medir a vós.
E por que reparas tu no argueiro que está no olho do teu irmão, e não vês a trave que está no teu olho?
Ou como dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o argueiro do teu olho, estando uma trave no teu?
Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e então cuidarás em tirar o argueiro do olho do teu irmão”
De maneira muito sábia, Cristo nos exorta a suspendermos o juízo. Isso significa uma atitude firme, séria e madura. Não de quem age por impulso de um conselho, porque vem de Cristo, mas porque entende as razões.
Não julgar significa não cometer os mesmos erros de antes. Julgar então é errado? Não de fato, pois o juízo faz parte da estrutura da mente, mas sobre esse tipo de juízo mais particular, que se prende ao ego, que julga para negar o outro e afirmar a si a todo instante. O Eu que precisa sempre comprovar sua condição de dono da razão, na verdade já está instável, já se mostra bem inseguro.
Toda ação tem uma reação na vida espiritual. Assim, todo julgamento promove dentro do ser uma consequência imediata para o próprio padrão no qual a mente se utilizará para julgar a si mesma. De forma que diversos desequilíbrios da mente, paranoias, loucuras, depressões, comportamentos esquizofrênicos, podem conter suas causas primeiras no padrão que a mente aplica a si mesma, durante anos, talvez décadas a fio.
É preciso que sejamos então mais suaves, sem nos inflarmos pela forma na qual as pessoas são. Isso não significa aceitarmos tudo o que seja indubitavelmente injusto. Aceitamos nossos semelhantes primeiramente porque entendemos que estamos cada um em um estágio diferente de esclarecimento, segundo porque se vemos claramente o deslize que alguém comete, antes do juízo acusador, utilizemo-nos da paciência e dos instrumentos da educação, única capaz de perscrutar os corações e promover as transformações do caráter.